sábado, 17 de maio de 2014

The Old Firm, muito mais que futebol

Jogos entre Rangers e Celtic, são duelos ideológicos que há dois séculos movimentam a cidade de Glasgow

O maior clássico do futebol escocês e um dos maiores do mundo movimenta o país britânico desde o dia 28 de maio de 1888, em jogo vencido pelo então recém- fundado Celtic FC, por 5 a 2. A rivalidade política e religiosa entre The Gers (adeptos do Rangers) e The Boys (adeptos do Celtic), porém, aumentou a cada confronto.

Apelidado de Old Firm (a velha firma), o duelo divide o país e a cidade de Glasgow que industrial e contemporânea abriga a maior população da Escócia. E o nome deste clássico não poderia ser mais sugestivo, devido a parceria e rivalidade, ambos faturam muito dinheiro com os confrontos em derbis.

Ao ponto de que em 1909, um provável acerto de resultado entre os rivais para forçar um terceiro jogo e garantir mais renda, gerou uma briga sangrenta entre os torcedores (revoltados com a situação) iniciando a história violenta deste confronto, que matou centenas de adeptos de ambos os lados em pouco mais de dois séculos de jogos.

O motivo maior para esta rivalidade, porém, é a segregação político religiosa existente entre os rivais. Rangers (protestante e seguidor do Reino Unido) x Celtic (católico, com forte ligação com a Irlanda e a independência da Escócia). O que segundo os próprios escoceses é fruto de uma sociedade dividida que até hoje mantém resquícios deste sectarismo. E o futebol, como ferramenta social também refletiu e ainda reflete isto em Old Firm.

Segundo o site da instituição Nilby Woth criada especialmente para acabar com a divisão religiosa existente no país, o sectarismo atual na Escócia é mais visível no futebol. Onde os laços históricos de alguns clubes com religiões e etnias distintas levaram a criação de grupos violentos em defesa de seus ideais. Algo que se pode notar em clássicos como o de Glasgow (Rangers x Celtic) e da capital Edimburg entre (Hibernian, católico e irlandês x Hearts, protestante e adepto do Reino Unido). E em alguns jogos este clima tenso continua a levar violência às comunidades escocesas.

Segundo o representante da Nilby Woth, Dave Scott, a Escócia é um país em plena evolução, mas ainda em guerra com o sectarismo, refletido nestes clássicos.“As paisagens culturais e econômicas mudam, enquanto a Escócia em que vivemos hoje é um pequeno país que se esforça para ser competitivo e moderno, ela ainda tem muito trabalho a fazer para abordar alguns pontos de vista negativos e prejudiciais à moda antiga, entre eles o sectarismo”

Em relação ao Old Firm, pode-se dizer que esta rivalidade teve inicio no século 19, quando imigrantes irlandeses (depois de uma praga nas plantações de batatas que sustentavam o país), foram obrigados a deixar a Irlanda e em busca de emprego pararam no Reino Unido mais precisamente na Inglaterra e Escócia[1].

Desde sua chegada, os irlandeses eram mal vistos, por serem de fora e claro, por terem preenchidos as ruas da Escócia como indigentes. Os que conseguiam trabalhos eram quase escravizados recebendo salários bem inferiores aos trabalhadores escoceses. E para um povo considerado de terceira linha, a religião e o futebol eram o desafogo para as malezas que enfrentavam. E até por isso, em 1888, o irmão marista Walfrid Kerins fundou um projeto de caridade chamado 'The Poor Children's Dinner Table', que entre outras coisas englobava o futebol através de uma equipe chamada Celtic FC, que defenderia o orgulho das raízes irlandesas.

Com um terreno alugado e improvisado, além de atletas emprestados do Hibernian FC (time também de origem irlandesa) a equipe estreou nas competições nacionais em 1888, conquistando em 1892 o título da Copa da Escócia e um ano depois o seu primeiro campeonato escocês. A origem celta irlandesa trouxe consigo todo um histórico de luta e superação de um povo de classe baixa, que orgulham até hoje toda a torcida dos The Boys ou Hoops, como também são apelidos os torcedores do Celtic FC. Desde então a equipe apresenta as cores irlandesas em seu estádio e seus torcedores mais extremistas apoiam a ideologia do antigo grupo terrorista irlandês IRA[2].

Do outro lado de Glasgow, na parte azul e branca, o time da elite escocesa nasceu também no século 19 diante da necessidade de um representante no futebol para a cidade. A equipe foi criada por quatro amigos escoceses que tiveram a inspiração em seu nome em uma equipe de Rugby existente na época. O Rangers foi fundado em 1872 e tem toda sua história ligada ao Anglicanismo[3]. O que, portanto, explica sua obediência ao Reino Unido, afinal esta é a igreja oficial da rainha.

Sua participação em competições oficiais teve inicio em 1873 quando estreou na Copa Escócia e posteriormente faturou seu primeiro título em 1891, como campeão escocês. A torcida do clube da elite protestante tem, assim como o rival Celtic, uma forte ligação com um grupo terrorista. O UVF (Grupo Protestante Radical), que defendia a soberania do Reino Unido e inclusão da Irlanda do Norte no mesmo, sendo este rival do grupo IRA, apregoando a soberania protestante na região através de ataques terroristas que vitimaram centenas de civis.

Em 1900, o Rangers seguindo o sistema de segregação religiosa, adotou uma medida de proibir a contratação de atletas não protestantes, ato que só foi interrompido 89 anos depois e ainda assim diante de muita polêmica. A contratação do atacante escocês católico, Maurice Jonhstone[4], gerou grande incômodo para a torcida do Rangers (que na época teria ameaçado de morte o ex-jogador do Celtic). Posteriormente Jonhstone se tornou um dos ídolos da história azul e branca de Glasgow, vencendo dois campeonatos nacionais e marcando mais de 100 gols, porém, muitos extremistas não o consideram um grande jogador da história do clube devido a sua forte ligação com o catolicismo.

Atualmente o Rangers aceita atletas de todas as religiões, mas carrega ainda consigo o respeito ao Reino Unido e as crenças protestantes de seus torcedores. O clube recentemente passou por uma grave crise financeira, faliu e foi refundado com o nome de The Rangers, mas segue com suas cores e camisa idênticas, mantendo a história de rivalidade no confronto. O The Rangers é o atual campeão da terceira divisão escocesa e disputará a segundona em 2014/2015.

Números e curiosidades do Old Firm:

Ao todo foram 610 jogos com 210 vitórias para o Celtic e 257 para o Rangers e 143 empates. O primeiro jogo foi vencido pelo Celtic FC (5 a 2) e o último aconteceu em abril de 2012 com nova vitória do Celtic (3 x 0).

Todo o contexto colocado acima ajuda na compreensão deste clássico. Muito mais que futebol, política ou religião, assuntos tão divergentes para serem tratados, o derbi Celtic x Rangers traz a tona estas três questões juntas, o que colabora para a tensão em jogos que reúnem os dois clubes.

Entre as páginas mais trágicas deste duelo estão o jogo de 1971, quando centenas de torcedores ficaram feridos e mais de 66 foram mortos em confrontos entre as duas torcidas. E o de 1931, onde jovem goleiro do Celtic, John Thomson sofreu uma lesão fatal na cabeça ao mergulhar nos pés de um atacante do Rangers, tornando-se uma figura emblemática do clássico.

A maior goleada da história no derbi foi registrada em 1957, a favor do Celtic. Em partida que o Rangers FC buscava o bicampeonato da Copa da Escócia, sendo amplamente favorito, os Hoops provaram que clássicos nunca são decididos antes da bola rolar e venceram por 7 a 1.

Após vários confrontos e décadas de hooliganismo e as mediadas tomadas na década de 80 pela vizinha Inglaterra, o governo escocês adotou leis parecidas, diminuindo a cada ano a violência em jogos do Old Firm. Nos últimos anos, a “guerra” está mais ideológica e dentro das quatro linhas, embora a cada jogo a tensão seja constante entre as torcidas.





[1] A Escócia surgiu como reino em 843 com a ocupação do sul e centro da Grã Bretanha pelo Império Romano, se tornando por volta de 1066 um regime feudalista, e posteriormente um reino independente no século 14, sendo incorporada a Grã Bretanha em 1707 através dos Atos da União, que formalizaram a entrada da Escócia no Reino Unido.
O país apesar de atualmente ter a maioria de sua população protestante, tem sua origem no povo celta (católicos), tanto que sua bandeira tem o azul devido a cor do céu e a cruz de Santo André, padroeiro do país.
Embora respeite as normas e leis britânicas, assim com País de Gales e Irlanda do Norte, a Escócia tem certa autonomia para determinadas questões (que são resolvidas no seu parlamento) e votará em 2016 sua independência e descentralização do Reino Unido. As maiores cidades da Escócia são respectivamente, Glasgow com 581.320 pessoas, Edimburgo 454.208, Aberdeen 183.030 e Dundee 142.070.
[2] O IRA foi um movimento paramilitar católico e reintegralista criado em 1919 que pretendia separar a Irlanda do Norte do Reino Unido e defender a soberania católica na região. Durante décadas o braço terrorista promoveu ataques armados contra a população e lideranças protestantes na Irlanda do Norte, que detém 75% de sua população protestante e o restante de outras crenças.
O grupo anunciou o fim da luta armada apenas em 2005 depois de uma negociação com a comissão Internacional do Desarmamento. Alguns membros que não aceitaram a medida pacífica tentam ainda praticar atos terroristas, mas sem sucesso.
[3] Movimento cristão que nasceu na Inglaterra no século 14 e que apesar da derivar da Igreja Católica segue suas próprias ideologias e orações. A Igreja Anglicana busca equilibrar a tradição católica com algumas influências da reforma protestante. A liturgia preserva a mais antiga estrutura de culto cristão, com grande ênfase na proclamação da Palavra de Deus, cedendo grande valor à liturgia, definindo as crenças e doutrinas no próprio manual litúrgico (o Livro de Oração Comum).
[4]  Mo Jonhstone como é conhecido iniciou sua carreira no Partick Thistle de onde saiu para ser vice-campeão da Copa da Inglaterra pelo Watford em 1984. Jonhstone passou posteriormente três temporadas no Celtic onde venceu a Copa da Escócia em 1984/85 e o Escocês de 1985/86. Saiu para Nantes da França e após três anos retornou a Escócia, sendo o primeiro jogador católico e ex-Celtic a vestir a camisa do Rangers, onde venceu duas ligas nacionais em sequência 89/90 e 90/91 e marcou 100 gols. O fato de ter jogado no Celtic atrapalhou e muito a vida do atacante que em um determinado período teve de mudar de Glasgow devido a ameaças de morte que sofria por parte da torcida do seu ex-time Celtic e também do Rangers. Após este período jogou no Hearts e Falkirk (equipes também da Escócia) antes de encerrar a carreia no Kansas City dos Estados Unidos. Pela seleção nacional jogou 38 jogos e fez 14 gols, média de 50% de aproveitamento.

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